Quando o mineiro Danilo Filho viu o edital da residência artística “Levadura. Programa de residencias de creadores-educadores”, estava aberto para músicos-educadores brasileiros, não pensou duas vezes e chamou o colega Albert Paixão para desenvolverem um projeto com crianças de 7 e 8 anos de idade em escolas públicas de Madri. Depois de muitas conversas virtuais nasciam os “Postais Sonoros” no qual os alunos deveriam registrar a paisagem sonora de Madri, tal qual se faz com as imagens através da fotografia.

Criado pelo coletivo artístico Pedagogias Invisíveis, patrocinado pela Fundação Santander e apoiado pela prefeitura de Madri, este intercâmbio artístico já teve quatro países selecionados: Polônia, Chile, Inglaterra e Brasil; sendo cada um deles vinculado a um centro cultural municipal. A última edição esteve ligada ao Conde Duque, antigo quartel do Exército construído no século 18 e que foi transformado, em 2011, num dos mais interessantes centros culturais da capital espanhola.

Amigos de longa data, Danilo Filho e Albert Paixão trabalharam em Belo Horizonte-MG tocando em bandas. Danilo, formado pela UFMG, é ator, professor em escolas particulares de BH há doze anos e trabalha com educação musical. Por sua vez, Albert Paixão, é formado pela UEMG em educação musical, é violonista e produtor musical.

Juntos, eles contaram como foi a experiência de trabalhar com alunos de escolas madrilenhas durante quatro semanas.

Como vocês ficaram sabendo da convocação desta residência artística?

Danilo Filho – Estou fazendo um máster na Universidade Complutense de Madri sobre educação em museus e conheci o coletivo espanhol “Pedagogias Invisbles” que trabalha a arte em espaços alternativos e com novos moldes de educação em arte. Eles elaboraram o “Levadura”, uma residência artística para artistas-educadores, apoiado pela prefeitura de Madri e patrocinado pela Fundação Santander. Quando saiu o projeto, convidei o Albert e ficamos pensando no que poderíamos fazer para juntar BH com Madri.

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Danilo Filho explica a atividade aos alunos junto a professora espanhola Isabel Vizcaíno.

Como surgiu a ideia do projeto “Postais sonoros” ?

Albert Paixão – Um dos requisitos do projeto era trazer uma expressão artística contemporânea e nós escolhemos o conceito de paisagem sonora estudada pelo pesquisador canadense R. Murray Schafer. Ele desenvolveu a ideia de usar o som do ambiente para fazer música, se distanciando dos instrumentos e para perceber musicalmente os espaços. Assim, chegamos à conclusão que poderíamos fazer uma comparação sonora entre as duas cidades. Durante a elaboração do projeto, percebemos que isso também seria uma forma de ter uma lembrança da cidade, tal qual uma imagem, e foi aí que surgiu a ideia de fazer os postais sonoros.

Danilo Filho – a ideia era dar a volta no ensino de arte e mostras às crianças que elaborar uma obra de arte exige pesquisa e trabalho. O projeto também vai contra tudo que estamos vivendo em matéria de tecnologia onde os lances são muito rápidos. Era preciso parar e pensar. Albert Paixão – O processo demandava entender todas as etapas para fazer uma obra e que as crianças compreendessem o caminho criativo de um artista.

Quais foram os pressupostos para a criação dos postais sonoros?

Danilo Filho – Nossa pergunta inicial era: o que aconteceria se nós viajássemos e registrássemos a cidade não com imagens, mas com sons? O que aconteceria com nossas lembranças? Dessa maneira, fazer compreender que o mundo não são somente imagens visuais, mas há outras experiências sensoriais.

Pautamos o projeto em quatro verbos: ouvir, identificar, selecionar e construir. Partimos da fotografia onde podemos fazer o mesmo processo e o aplicamos para o som. Então, queremos retratar aquele momento – que não é a realidade, apenas um recorte dela – através dos sons.

Como foi a elaboração dos postais sonoros em Belo Horizonte?

Albert Paixão – Selecionei dois locais para fazer os postais: a Praça Sete e a Lagoa da Pampulha, à noite, num dia de chuva. Ali, selecionei os sons para mostrar as pessoas como são esses lugares a partir dos sons registrados. O que fiz em BH seria a lembrança daquele dia, pois o postal sonoro eterniza a mágica do momento.

O mesmo que se dá na fotografia se dá na música, porque não se pode repetir uma experiência. A música ganha novas possibilidades de interpretação, pois quando a gente cria uma obra, não necessariamente é aquilo que o artista quer. Mas para as crianças, a obra vai ser uma lembrança.

E em Madri?

Albert Paixão – Não fomos nós que escolhemos os lugares e sim as crianças. Numa das escola os dois locais propostos foram o Matadero e o Pradolongo; e na outra tivemos que reformular o projeto.

Parque

Albert Paixão e seus pupilos em ação no parque Pradolongo.

De que maneira vocês apresentaram a proposta para as crianças?

Danilo Filho – Começávamos com a descrição verbal, em seguida, com a descrição visual – via Google – buscando imagens de Belo Horizonte. Finalmente, mostramos o postal sonoro e eles percebiam que não tinha o de Madri. E aí dissemos: nossa missão é fazer um postal sonoro de Madri. Depois levamos um quebra cabeça da Praça Sete e eles conectavam as imagens com os sons.

Descreva-nos os colégios onde vocês desenvolveram o projeto.

Danilo Filho– Trabalhamos com dois colégios públicos escolhidos através de um edital, depois que nosso projeto foi selecionado.  Num colégio tivemos duas turmas de 25 alunos e no outro, uma turma de 16. Foram seis sessões, duas horas cada, de três semanas e a última foi a apresentação trabalhando esses quatro verbos, mais a escolha do lugar e a gravação.

As duas escolas tinham cenários bastante diferentes. Uma delas vivia uma realidade muito marginalizada, onde alguns alunos tinham problemas cognitivos e tivemos que adaptar bastante o projeto para envolver os meninos no processo de construção coletiva. Encontramos um panorama onde muitos alunos não comiam a noite em casa, nem tomavam café da manhã e às vezes, somente se alimentavam na escola.

Contamos com o apoio da professora Isabel Vizcaíno que trabalha os conteúdos através de projetos e ela foi essencial para que nós reformulássemos a proposta, mas também nos encantássemos com seu jeito de ser professora. Assim, modificamos o projeto e nos centramos na história do Conde Duque, como a gente podia recriar histórias que aconteceram ali, compondo uma paisagem sonora e histórica. Não seria um postal de hoje, mas sim um histórico, dos séculos passados.

gravação

Depois de recolhidos os sons, os alunos junto a Danilo Filho (em pé) e Albert Paixão (sentado), os selecionavam e os gravavam no computador.

Em que medida esta alteração afetou a proposta de vocês?

Albert Paixão – Esta mudança trouxe uma riqueza muito grande para o projeto e foi uma troca enorme. Nós tínhamos um sério problema de falta concentração com esta turma e a questão de imaginar o visual a partir do sonoro demanda uma atenção muito grande. Foi um processo de adaptação. Em uma sessão apresentamos a história de Conde Duque através de quatro episódios que se passavam ali.

Danilo Filho – A gente gravou frases de 30 segundos sobre a história do Conde Duque. Eles a ouviam, faziam um desenho e comparavam os trabalhos entre si. Com eles, tivemos que trabalhar em grupos de quatro, pois havia muitos problemas de relacionamento entre os colegas. No dia da gravação foi lindo porque cada grupo estava responsável por gravar uma história, mas eles trabalharam como um único grupo e fizeram as quatro histórias juntos.

Encontramos uma realidade parecida com a de muitas escolas de periferia do Brasil. No entanto, a grande diferença é a estrutura material da escola, pois as aqui estão equipadas com material multimídia e as turmas são menores. Também pesou o capital humano, porque a professora Isabel Vizcaíno está engajada em trabalhar através de projetos que conseguem atingir os mesmos objetivos daqueles que o fazem com livros-textos.

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Para realizar a gravação, os alunos estiveram no Conde Duque.

Como foi a apresentação dos “postais sonoros”?

Danilo Filho – Reunimos as duas escolas, os pais e alguns professores. A gente primou pela liberdade e queríamos que as crianças decidissem como seria a apresentação. Os próprios meninos contaram com suas próprias palavras o que fizeram em cada sessão. A professora Isabel Vizcaíno fez um vídeo sobre o processo de criação, como foi a gravação dos sons, etc. e um fotógrafo havia registrado também. No final de tudo, apagamos as luzes e apresentamos os postais sonoros.

Albert Paixão – Nós tivemos um aluno que veio com a camisa da seleção brasileira.

Danilo Filho – A partir do momento que os pais escutaram os sons e viam o que os meninos haviam feito, entendiam que aquilo não era um monte de sons gravados e sim uma obra que havia se modificado pela ação das crianças. Este é um questionamento próprio da arte contemporânea, que diz que o que ela reflete em você é mais importante do que a obra em si.

Por fim cantamos uma canção que falava um pouco desse processo e todo mundo no final cantou com a gente. Estamos emocionados até agora!

No vídeo abaixo um pouco do processo criativo dos postais sonoros:

Juliana Bezerra escreve neste espaço e no blog Rumo a Madrid.