Não é possível fazer muita coisa quando aquela mimada indolência se alastra com suas raízes nos móveis da casa, sobre as paredes do frio banheiro, entre as janelas enferrujadas, pelos corpos desarticulados e inertes. É quando nos cerramos em nossas habitações, nosso abrigo blindado de cada dia. Ali acolhemos exclusivamente gente de nossa confiança e não nos misturamos mais com o mundo.
O coro de desesperados parece se multiplicar em progressão geométrica. Avança! Corre para pegar o lugar, passa por cima, derruba o outro, pega o pedação maior e melhor. E que se dane o aleijado, o velho, o doente, o lerdo, o menor, o fraco.
Um dia tomei ciência de que estava viva. Elegi mirar o oceano, sempre que possível fosse, como passatempo predileto. E espantava-se por vezes perdidas. Lançava sonhos no horizonte. Sonhos que refletiam as cores e os odores de um mundo admirável onde eu viveria para sempre.
Vez por outra batia a cabeça. Estacava. Culpas, medos, ausências. Gritei com o outro, acusei, lamentei estar viva, esperneei como o relutante inseto que sofreu o duro golpe do veneno esguichado nas entranhas. E como chorei, e ainda choro, pelo leite derramado. Ah! E de modo jactancioso, vil e vão, reivindiquei só para mim a posição de criatura mais amargurada de todo o planeta.
O mundo extrapola o domínio organizado das ideias. Embrião inacabado e disforme, crescendo fora do ventre de Deus. Pequeno monstro assombrado que chora e ri, graceja e soluça. Indigente mundo de seres e coisas. Estala, esguicha, explode em milhares de pedaços pulverizados de corrupção, violência, irritação, cores, lua prateada sobre o mar, indiferença, ira, brisa, negligência, risos e prantos, falsidade, crianças, pão fresco com manteiga, cães, pássaros, carinhos, carícias, abraços, guerras, o sol que desperta, a escuridão que sossega, execradas democracias erguidas com árduo labor e o seu reverso: ditaduras consentidas e louvadas por muita gente de bem.
O burlesco e o assombroso estão de mãos dadas. Se na Coréia do Norte a vida do jovem ditador Kim Jong-un será disciplina obrigatória no ensino secundário e uma portaria determina que os homens adotem o mesmo visual do líder supremo; na região norte do Iraque, mulheres e crianças do sexo feminino, pertencentes à etnia yazidi são violentadas e transformadas em escravas sexuais por jihadistas do grupo Estado Islâmico.
Até hoje não pude desvendar onde seria o paradeiro da linha do horizonte que desdobrava quando menina. Mesmo admitindo a realidade manifesta de um arremate geográfico: Europas, Áfricas, Orientes Médios, fossas abissais, mares do sul, Orientes Extremos, inocentemente passei a confiar no sem fim das coisas divinas.
Santo Agostinho, homem de fé, confidenciou: “Eis que o céu e a terra são; e nos dizem em altos brados que foram feitos, pois se modificam e variam. […] O céu e a terra clamam também que não se fizeram a si mesmos: somos porque fomos feitos; não éramos antes que fôssemos, de modo a termos podido ser por nós mesmos. Basta olhar para as coisas para ouvi-las dizer isso. Tu, Senhor, fizeste essas coisas. Porque és belo, elas são belas; porque és bom, são boas; porque tu és, elas são.”
Acolher com clemência nossos limites e os limites do outro ante o irrestrito da providência divina nos assenta numa perspectiva de humildade extraordinária. Assim sendo, torna-se imperioso crer na potência divinal do amor. Confiar e esperar no trajeto, no vislumbre das fitas coloridas que se desdobram ante nossos incrédulos e inquietos olhos humanos.
O amor é concreto como um pedaço de pão: nutre e sustenta. É motor. Movido por pequenos prodígios: o som, a prece, os corpos que se abraçam, a benevolência, o comprometimento com o outro, a quieta esperança. Não tem nada de natural e instintivo. É absorvente meio de sobrevivência. Combinando firmeza e delicadeza é necessário saber escolher o que sentir, o que pensar, o que calar, o que fazer. Porque o amor não é livre para fazer o que quiser.

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