Em determinado momento do show de Karina Buhr, no Palau de la Música Catalana, no último dia 30 de junho, olhei ao meu redor e, enquanto ela cantava uma de suas músicas mais “punks”, pensei que eu nunca antes havia visto tanta gente com mais (ou bem mais de 40 anos), comodamente sentadas, enquanto observavam, como tranquilos espectadores, enquanto a artista saltava, corria e rolava pelo chão, ao som enérgico, vibrante e “instigado”, como se escutava naquela canção.

Um público muito interessante, com gente nova, velha, pessoas assustadas, tentando entender aquele show“, disse Karina à Rádio Estel de Barcelona, no dia seguinte.

Horas antes do show no Palau, estive com Karina e, com enorme prazer, publico a parte final dessa entrevista. O destaque, como verão, é todo para o OCUPE ESTELITA.

karina buhr ,ATADERO-38

FLÁVIO: Karina, “o Brasil tá na moda mundial”. Cansarás de escutar algo assim nessa tua excursão europeia, tua turnê, em tempos de Copa do Mundo – e daqui até às Olimpíadas de 2016. Como reages? Tem interferido em algo nos teus shows no exterior? Ou basta um thankyouzinho e muchasgraciazinhas pro público multiculturalizado? Tens interesse em buscar tempos e espaços pra interagir com tudo isso, interagindo com teu público?

KARINA: Gosto muito de viajar e fazer isso fazendo shows é um presente pra mim. Não sei descrever o quanto fico feliz. Isso independe de o Brasil estar na moda ou não. Gostaria de tocar pelo mundo mais do que toco. Rolou essa turnê agora e estou muito feliz e quero tocar em muitos mais lugares, não só na Europa. Esse ano rolaram rumores e um show no Azerbaijão e passei noites sem dormir pensando nisso. (risos). Mas não rolou.

Sobre a minha reação com a Copa do Mundo e as Olimpíadas, eu espero realmente que os índios sejam ouvidos, pelo Brasil e pelo mundo. Isso é muito urgente. Os índios brasileiros, em todas as suas etnias que ainda resistem, bravamente, somos nós antes de nós e são abandonados por nós. Isso é muito triste.

 

FLÁVIO: Conta aí sobre a tua vinda nesse projeto com o Ministério das Relações Exteriores… Como foi tua entrada nesse projeto? Como vês essa projeção e promoção internacional daS culturaS brasileiraS?

KARINA: Os shows de Barcelona, no Palau de la Música e o de Madri, no Festival Fringe, vieram através desse convite. Fiquei muito feliz com isso e essa ida possibilitou que a turnê acontecesse, porque uma vez estando aí, e com essa estrutura garantida, foi possível bolar o restante da turnê. Acho muito importante esse tipo de ação. Isso precisa acontecer mais e variando os personagens, dando espaço pra essaS coisaS tão ricaS que é/são aS músicaS brasileiraS.

 

FLÁVIO: Caetano foi atração recente do maior festival musical de primavera de Barcelona, o Primavera Sound. Todos aqueles jovens queriam mesmo o Caetano roqueiro e nada de “Leãozinho”. E você, Karina? Livre e diversa, como sempre? “Romântica” e meio Jim Morrisson no palco, ao mesmo tempo?

KARINA: Romântica Defeituosa, eu costumo dizer.
Quanto a Jim Morrisson, são seus olhos. (risos).

FLÁVIO: Desculpa aí, mas o Edgar Scandurra e o Fernando Catatau sempre serão, pra uns quarentões como eu, muito mais que os guitarristas da tua nova banda.

KARINA: Acho maravilhoso que isso aconteça. E não só com eles. Com todos da “minha” banda. Esse é um show de banda, não um show de cantora. Faço um show, tiro um som e me mexo com eles o tempo todo. É meu show, são minhas músicas, eu dou a direção que a gente toma, mas somos nós juntos no palco e nos discos, sempre. Edgard não vai nessa viagem, está agora numa super turnê com o Ira!. Catatau vai e também Mau, no baixo (Mau produziu junto comigo e Bruno Buarque meus dois discos solo), André Lima no teclado e Clayton Martin na bateria. São uns maravilhosos todos eles.

 

FLÁVIO: Baiana. 10 anos “paulista”. Olindense de formação e vida. Karina Buhr. Com esse sobrenome alemão. Atriz, desenhista, blogueira… Que mais nos preparas? Tu és, hoje, o teu passado?

KARINA: Isso de passado e presente pra mim é tudo uma coisa só, não tem divisão. Salvador onde nasci e nasceu e sempre morou meu pai. Recife e Olinda onde cresci, entrei de cabeça na música e passei a maior parte da minha vida, e terra da minha mãe. Na Alemanha tenho muita história, uma parte grande da família, a família toda do pai da minha mãe. Tudo isso faz parte de mim e transparece o tempo todo. Com as coisas que faço é igual. Desenho, desisto; canto, desisto; faço música, desisto; escrevo, faço tudo ao mesmo tempo, sem conseguir direito separar. Não me considero blogueira. Tenho blogs porque gosto de escrever e aí não consigo negar quando me chamam. Pelo contrário, fico bem feliz e aceito. Mas não funciono muito nessa pressa do acontecimento ser agora e o blog ser atualizado de imediato. Às vezes fico tão agoniada que dou umas desistidas imensas e depois volto, com promessas mil. Escrevo todo dia, mas não necessariamente tenho vontade de expor tudo que escrevo, nem todos os dias. A parte de atriz é toda do Teatro Oficina. Enfim, o passado também é longe de onde pra mim.

 

FLÁVIO: Mais alguma coisa Karina? Algo importante para ti que nos queiras explicar, já no final dessa segunda parte da entrevista?

KARINA: Não pensei em nada agora. Talvez pela loucura de milhões de coisas e do movimento “Ocupe Estelita” na minha vida. Mas se der tempo ainda pra algo depois, me dá um toque que falo disso.
Beijo e obrigada!!!

Como bom entrevistador, eu havia dado a entrevista por concluída. Mas eu sabia que ela não deixaria de falar da importância de um dos movimentos de ocupação urbana de espaço público (em processo de intenso e debate sobre a privatização desses espaços) mais importante do Brasil nos últimos dias e com ampla repercussão internacional. De repente, Karina passou a expor de forma contundente a sua visão sociocultural de todo esse processo, como poderemos ler, em seguida. Como eu havia vivenciado com bastante interesse e comparação, guardadas as devidas proporções, a explosão de protestos em Barcelona pela desocupação do espaço cultural Can Vies, aproveitei para provocar ainda mais a artista.

 

FLÁVIO: Barcelona pegou fogo, Karina, poucos dias atrás. A (in)justiça daqui despejou um centro cultural autogestionado chamado Can Vies. Aqui, o movimento OKUPA é a versão europeia dos nossos “Sem Teto” e “Sem Terra”. O tema é esse: ocupação produtiva de espaço público (publicizado), função social e ação cultural. Tudo inseparável. Indissociável. Explica aí o movimento sociocultural OCUPE ESTELITA no nosso Recife, Pernambuco. Você se tornou uma das caras mais reivindicativas desse movimento.

KARINA: Desde o ano 2008 existe uma movimentação contra um projeto chamado “Novo Recife”, que prevê a construção de 15 torres de luxo, de até 40 andares cada uma, no antigo Porto do Recife, na área dos armazéns do Cais José Estelita. Todo o processo desse projeto é ilegal. O leilão é questionado na sua comissão, na sua forma e na data que foi feito. O projeto não tem estudo de impacto de vizinhança, nem de impacto ambiental. É condenado pelo IPHAN (o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e, contra ele, correm 5 processos na justiça. A obra está embargada. E, mesmo assim, as construtoras começaram a demolir os armazéns, na calada da noite, na madrugada do dia 21 de maio deste ano.

Desde então, aproximadamente 100 pessoas estão acampadas no terreno. E, diariamente, muitas pessoas vão lá para dar e assistir aulas, pra levar mantimentos, para participar de reuniões ou para discutir o andamento do movimento.

Tem muita gente unida em Pernambuco, e cada vez mais se espalhando pelo mundo, contra essa especulação escrota e ilegal da cidade, que exclui as pessoas e trata como invisíveis os que moram nos arredores. Que mata a história, que enfeia a paisagem e deixa a cidade ainda mais quente, por simplesmente tapar a circulação de ar que existe na beira do rio (Capibaribe, o principal rio do Estado de Pernambuco).

 

Nota do entrevistador: para perceber a importância desses rios, já escutei diversos pernambucanos exagerados explicarem, evidentemente de forma irônica e divertida, que o Oceano Atlântico nada mais é que um mero fenômeno natural provocado pelas águas dos dois grandes rios estaduais: o Capibaribe e o Beberibe.

karina buhr ,ATADERO-44

KARINA continua sua enfática e mais expressiva resposta: A orla marítima de Recife, na praia de Boa Viagem, tem sombra de prédio (às três horas da tarde!) em vez de coqueiros. O paredão de prédios altos, e com pouco ou nenhum espaço entre um e outro edifício, acabou com a brisa marinha da cidade.

No ano 2012 começaram os Ocupes “físicos”, lá no Cais José Estelita mesmo. As pessoas se encontravam na frente do lugar, onde tinha música, reuniões, conversas, dança, circo, pintura, programação pra crianças… Tudo isso trouxe uma visibilidade muito maior pra essa história. E agora há a ocupação propriamente dita, depois da violência da demolição ilegal, na calada da noite.

A imprensa local só fala mentiras a respeito do movimento Ocupe Estelita. E também mente vergonhosamente sobre o projeto Novo Recife. Existe uma propaganda maciça das empreiteiras, grandes construtoras, em todos os meios de comunicação da cidade.

O Procurador-geral do Estado é primo do ex-governador Eduardo Campos (que só saiu pra fazer campanha presidencial) e também mantém seu escritório de advocacia. Que é justamente o escritório de advocacia que defende as empreiteiras do Novo Recife. Que, por sua vez, são doadoras de 60% do dinheiro de campanha política pro PSB (Partido Socialista Brasileiro), partido do Prefeito e do Governador do Estado. Vale lembrar que Eduardo Campos é presidente nacional do PSB.

Por outro lado, há a união de tanta gente (e tanta gente diferente entre si). E com essa resistência e força toda, lutando pelo mesmo objetivo: que é uma cidade de todo mundo. Que é o cumprimento das leis e não a sugação do que é de todos. Isso é uma coisa que eu nunca vi acontecer desse jeito. É um aprendizado diário, coletivo, muito impressionante e agregador de pessoas.
E é uma luta contra um inimigo muito forte! Poder público e imprensa local, vendidos às empreiteiras e trabalhando por elas e não pela cidade e pela população. Isso desde sempre…
Me emociono muito a cada segundo que vivo isso e que me envolvo com as outras pessoas que também estão nessa e tentando sempre trazer mais gente pra perto. E me dói não estar lá, fisicamente perto, o tempo todo. Fui lá, fiz um show no programa Som na Rural, no dia 1 de junho passado. Passei o dia seguinte no acampamento. Todo mundo junto, limpando lixo, capinando e limpando o terreno, cozinhando… um troço lindo de se ver!

Todos os dias, tem aulas abertas, pra quem quiser chegar, sobre direito, arquitetura e urbanismo, alimentação, espaços públicos e privados, encadernação artesanal, etc. A última coisa linda foi uma escolinha, com aulas de reforço pras crianças das comunidades do entorno. Muita gente se disponibilizou a dar aulas e muito material estava sendo doado, quando teve a desocupação violenta e ilegal feita pela Polícia Militar de Pernambuco.

A polícia descumpriu o acordo feito entre a Prefeitura, a própria polícia e os representantes do movimento Ocupe Estelita. No dia 17 de junho, de madrugada, a polícia chegou com muita violência. Expulsou os ocupantes com espancamentos, usando cacetetes, chicotes e espadas (!), cavalos e bombas de gás lacrimogêneo. Até crianças foram feridas e também uma mulher grávida. A advogada, representante do movimento Ocupe Estelita, e um Promotor Público também apanharam da polícia.

A polícia usou a cavalaria também pra tirar os ocupantes de uma área pertencente à União (ao Governo Federal) e chegaram a colocar tapumes (como barreiras contra as pessoas) e tapar a linha férrea, que ainda tem atividade de trens. Em algum momento vai chegar um trem e não terá como passar.

As obras recomeçaram no Estelita. Mesmo, de novo, ilegalmente. Mesmo embargada. Recife, terra sem lei.

A ocupação agora está embaixo do viaduto Capitão Temudo, ao lado da ocupação violentamente desfeita.

Os jornais divulgam que o Ocupe Estelita “era um movimento…”. O Ocupe Estelita não era, o Ocupe Estelita É! Cada dia mais forte que no dia anterior.

 

karina buhr ,ATADERO-12

karina buhr ,ATADERO-40

karina buhr ,ATADERO-14

IMG_2636

A entrevistada faz questão de concluir essa resposta com a divulgação nas redes sociais do movimento Ocupe Estelita:

#ocupeestelita  #resisteestelita

 

Aquele abraZo! FLÁVIO CARVALHO.